1º capitão donatário da Graciosa
(Sobre esta família e sobre o povoamento da Graciosa é fundamental o estudo de Luis Conde Pimentel, Acerca do Povoamento da Graciosa, «Boletim do Museu Etnográfico da Ilha Graciosa, n° I, 1986, que se baseia em fontes inéditas, especialmente colhidas nos registos paroquiais, tabelionato e processos cíveis da comarca da Graciosa. Nem sempre estamos de acordo com algumas das conclusões do autor, o que em nada belisca a excelente qualidade da sua investigação absolutamente inovadora no que toca ao núcleo povoador daquela ilha. A Luís Conde Pimentel ficamos também devedores de muitas informações que sempre colocou ao nosso dispor ao longo dos últimos anos de saudável convívio genealógico, consubstanciado nos «Encontros de Genealogistas dos Açores», que, com tanto entusiasmo organizou de 2 em 2 anos na sua ilha Graciosa).
N. no Reino pelos meados do séc. XV e f. na Graciosa em data indeterminada.
Foi um dos primeiros povoadores da ilha Graciosa, para onde foi com parte da sua família em circunstâncias que não são muito fáceis de estabelecer, tais as contradições existentes entre as -diversas e lacónicas fontes que possuímos para o estudo desse período da história da Graciosa.
Segundo Luís Pimentel (Op. cil., p. 60 a 65), Vasco Gil Sodré ter-se-ia fixado na Graciosa por volta de 1465-1470, data que nos parece dever ser revista em consequência do texto de Gaspar Frutuoso que afirma claramente que ele foi para a Graciosa no tempo em que Portugal esteve envolvido em guerras com Castela e depois do desaparecimento de seu cunhado Duarte Barreto do Couto (Todas as fontes indicam Duarte Barreto como capitão da Graciosa, antes do aparecimento de Pedro Correia da Cunha. Francisco Ferreira Drummond (Apontamentos para a História dos Açores, p. 322, apoiando-se em Jules de Hesteyrie «Revista dos Dois Mundos», 1. I), põe em dúvida esta capitania, dizendo: «custa a crer que ele obtivesse carta de capitania, se é verdade, que, como diz, o autor citado havia em Portugal perpetrado o crime de homicídio pelo qual viera para a Graciosa, mas quantas vezes observamos nós que a virtude é festejada e o vicio é premiado?». Note-se, no entanto, que não há qualquer documento que acuse Duarte Barreto de crime de homicídio), capitão da ilha. Isto leva-nos a concluir que a passagem à ilha ocorreu entre 1475 e 1479/1480 (Gaspar Frutuoso, Livro Sexto das Saudades da Terra, Ponta Delgada, 1963, p. 308. Estas guerras referem-se às que opuseram o nosso D. Afonso V a Castela, quando pretendeu o trono daquele reino, propondo o casamento com a sua sobrinha D. Joana, a Beltraneja ou a Excelente Senhora, filha de Henrique II de Castela e de D. Joana (irmã de D. Afonso V). Ocorreram entre 1475 e 1479, ano em que se celebraram as pazes pelo Tratado das Alcaçarias, confirmado a 6.3.1480), pois foi neste período que Barreto foi aprisionado pelos castelhanos e dado como morto.
A par disto, sabemos que Bartolomeu Perestrelo obteve carta da capitania da ilha do Porto Santo a 15.3.1473 (Henrique Henriques de Noronha, Nobiliário da Ilha da Madeira, p. 450, onde se diz que Bartolomeu Perestrelo tirou «por demanda a Capitania d'o Porto Sancto a seu cunhado Pedro Corrêa, Capitão d'a Graciosa, que então a tinha por venda que d'ella lhe havia feito sua mãe Izabel Moniz n'a sua menoridade por preço de R.s 300$000, o qual conseguiu por sentença d'a Relação». No entanto, ao contrário do que afirma o genealogista madeirense, Pedro Correia não teve, em simultâneo, as capitanias do Porto Santo e da Graciosa. Esta só lhe foi concedida depois de ter perdido a primeira), desalojando o cunhado Pedro Correia da Cunha, pelo que a entrega a este último de toda a ilha Graciosa deve ter ocorrido ou no ano de 1474 (à semelhança e em moldes idênticos aos das capitanias criadas nesse ano na ilha Terceira), ou mais certamente em anos imediatamente posteriores. Recorda-se que 1474 foi um ano de viragem na intensificação do povoamento e administração das ilhas, numa nova política encetada pela Infanta D. Beatriz, mãe e, nesta ocasião, tutora, do donatário D. Diogo, 4° duque de Viseu e 3° duque de Beja Desconhecemos a existência do diploma de outorga da capitania da Graciosa a Pedro Correia da Cunha, mas é óbvio que foi depois de ter perdido a capitania do Porto Santo (1473) e depois ainda do desaparecimento de Duarte Barreto (entre 1475 e 1479/1480).
Assim sendo, Vasco Gil Sodré e Pedro Correia da Cunha teriam aportado à Graciosa sensivelmente pela mesma altura, embora as fontes assegurem que Vasco Gil chegou primeiro. Gaspar Frutuoso assevera que Pedro Correia «quando veio já Vasco Gil estava nela com sua irmã, a capitoa, mulher do Barreto, e viviam da banda da Praia, que depois foi vila, como é» (Frutuoso, op. cit., p. 312).
O texto de Frutuoso deixa entrever com alguma nitidez a existência de uma certa conflituosidade entre estes dois personagens, criada não tanto por diferenças de nível social, mas por questões de mando e de governança da terra. É que Pedro Correia chegou investido como capitão de toda a ilha, e Vasco Gil viera a chamamento de sua irmã Antónia Sodré, viúva de Duarte Barreto, o desaparecido capitão, a qual, do dizer de Frutuoso, «escreveu a Vasco Gil (...) que se viesse pera ela, pera a acompanhar, o que ele fez, e foi um dos primeiros que ali vieram» (Frutuoso, op. cit., p. 310), pelo que é de admitir que Vasco Gil talvez se tivesse sentido herdeiro dos poderes do cunhado, vivendo a fantasia de que podia mandar alguma coisa.
O cronista açoriano que mais largamente trata os primeiros tempos da Graciosa é o Dr. Gaspar Frutuoso que discorre com bastante pormenor sobre os Sodrés e os Correias. É verdade que o seu testemunho apresenta algumas contradições, chegando mesmo a ser confuso, mas apesar disso a sua narrativa dá-nos informações fundamentais, próprias de quem estava bem informado, e possibilitando assim, jogando com outros dados, estabelecer uma cronologia relativamente segura dos acontecimentos. Assim, associando as suas informações aos dados que os antigos genealogistas graciosenses nos fornecem (João Gonçalves Correia (vid. PICANÇO, § 1°, n° 5), seu filho António Correia da Fonseca e Ávila (vid. BETTENCOURT, § 12°, n° 6), seu neto Frei Cristovão da Conceição (vid. BETTENCOURT, § 12°, n° 7), o cónego João Correia de Ávila (vid. BETTENCOURT, § 12°, n° 7), Francisco Homem Ribeiro (vid. BETTENCOURT, § 16°, n° la), o «Livro do Capitão» (hoje propriedade do genealogista graciosense Oriolando de Sousa e Silva), etc.) temos hoje a possibilidade de ver um pouco mais claro as circunstâncias que opuseram os Sodrés e os Correia nos finais do século XV e dealbar do século XVI.
Quanto a Vasco Gil Sodré, ficou estabelecido por Luís Pimentel que ele é natural de Montemor-o-Novo (Luís Pimentel, em op. cit., diz que um tal Antão Sodré, de Montemor-o-Novo, fez testamento em 1496 e foi pai de Inês Sodré, mulher de Gil Esteves de Resende. Tal data fá-lo contemporâneo de Vasco Gil Sodré, talvez seu irmão), e não em Montemor-o-Velho, como até agora se acreditou, aceitando sem crítica as informações de certos autores. E veja-se o depoimento prestado em 1569 pelo tabelião graciosense André Furtado de Mendonça, aliado pelo casamento aos Sodrés: «Digo eu que, servindo de tabelião na Vila de Santa Cruz desta Ilha Graciosa, vi um Brazão e o tive em meu poder, que tirou Diogo Vaz Sodré em 23.3.1503 em Portugal de sua Nobreza e dizia aos que aquela certidão virem que Diogo Vaz Sodré requeria que se lhe desse as Armas de seus avós que por direito lhe pertenciam, da casa dos Sodrés de Inglaterra, e primeiro que se satisfizesse a petição de Diogo Vaz Sodré se tirou uma inquirição por homens honrados, um instrumento público feito por mandado de João Dias, Cavaleiro Fidalgo, juiz ordinário na Vila de Montemor-o-Novo e João Lopes inquiridor, por mão de Fernão Vaz, tabelião publico e do judicial na dita Vila de Montemor e seu termo, e outro instrumento público foi feito em as Alcaçarias do Sul, por mandado de Vasco da Fonseca, juiz ordinário, e Fernão Vaz inquiridor e por mão de João Afonso, tabelião público na dita Vila de Alcaçaria» (Luís Pimentel, op. cit., p. 65).
O genealogista João Correia de Ávila, cónego da Sé de Angra, falecido em 1676 (Os seus trabalhos genealógicos foram trasladados por Francisco Homem Ribeiro, no séc. XIX, num manuscrito hoje na posse do autor (A.M.). Aparte que se refere aos Sodrés encontra-se a fis. 12 e seguintes), seguindo a tradição erra na naturalidade de Vasco Gil e afirma que «por certo homecidio veio de Lisboa com sua família para a Graciosa ao tempo em que tinha acontecido a desgraça do dito seu cunhado Duarte Barreto» Designa-o «pessoa nobilissima Cavaleiro do Habito de Christo» (outros indicam ser da de Santiago). Por seu turno, Gaspar Frutuoso informa que ele estivera em África - o que é muito possível, pois encontramos inúmeros «cavaleiros de África» no povoamento das ilhas -, e que levara para a Graciosa, além de «doze criados» (!! !), a mulher, dois filhos varões (Diogo e Fernão) e algumas filhas (Mécia, Leonor e Inês), «que todas foram casadas na terra com homens muito nobres e na ilha Graciosa viveram semrre apartadas em a vila da Praia, e deles descendeu tão grande geração, que de todos estes irmãos se povoou esta vila, que será agora de duzentos e cinquenta vizinhos, cinquenta dos quais somente serão de outra geração, pela qual rezão dizem que todos os da Graciosa são fidalgos» (Frutuoso, op. cito , p. 307 e 315).
Uma outra situação nebulosa diz respeito ao casamento ou casamentos de Vasco Gil Sodré. O bem informado genealogista Manso de Lima (B.N.L., Reservados, «Colecção Pombalina», Manso de Lima, Famílias de Portugal, tít. de Coutos, § 1°. Vid. ainda nosso tít. de COUTO, § 1°, Introdução, n° 5), ao tratar da família do capitão Duarte Barreto do Couto diz-nos que sua irmã Iria Vaz do Couto veio para a Graciosa com seu marido Vasco Gil Sodré. Ambos eram filhos de Vasco Anes do Couto que foi escrivão dos feitos e sisas de Montemor-o-Novo, por carta de 12.11.1433, confirmada por carta de 29.8.1439, e netos de João Anes do Couto, morador em Montemor, «criado» de D. João Afonso Teles (morto em Aljubarrota a: 14.8.1385), o qual João Anes, por ter seguido o partido de Castela, viu confiscados os seus bens, que foram entregues a Mem Rodrigues de Vasconcelos, por carta de 24.6.1384.
Manso de Lima não é o único na identificação desta Iria Vaz do Couto como mulher de Vasco Gil Sodré, pois o já citado cónego João Correia de Ávila (Manuscrito referido na nota 10), embora ignore o nome dela, afirma que Vasco Gil fora «cazado com a irmã de hu Barreto, e irmão de mulher do Capitam Donatário Duarte Barreto».
Daqui se conclui que existiram dois irmãos Sodré (Vasco e Antónia), casados com dois irmãos Barreto (Iria e Duarte), sendo pois duplamente cunhados. O que aconteceu a Iria Vaz do Couto, não nos foi possível averiguar.
Mas acontece que também se tem conhecimento de um casamento de Vasco Gil Sodré com Beatriz Gonçalves da Silva, da qual não pode haver a mais pequena dúvida, pois o tabelião André Furtado de Mendonça declara expressamente que ainda a conheceu «e se nomeava por mulher do dito Vasco Gil Sodré, e o dito Francisco Luís, pai dos suplicantes, se nomeava por neto dos dittos Vasco Gil e Beatriz Gonçalves» (Luís Pimentel, op. cit., p. 61 e 62. 16).
Resumindo, Vasco Gil foi casado duas vezes, a 1ª com Iria Vaz do Couto - vid. COUTO, § 1°, Introdução, nº 5 -, de cujo casamento ignoramos se teve algum filho; e a 2a com Beatriz Gonçalves da Silva que todas as genealogias dizem ter sido mãe de diversos filhos que adiante enunciaremos, Frutuoso chama-a «Beatriz Gonçalves de Bectaforte, natural do castelo de Bectaforte de Inglaterra», mas isto é uma clara confusão com uma suposta avoenga inglesa de Vasco Gil Sodré, designada por Brígida Sodré de Bectaforte, sobre cuja existência temos as maiores dúvidas.
Quanto à origem familiar de Vasco Gil Sodré, as versões também diferem e foram já enunciadas no estudo de Luís Pimentel (Luís Pimentel, op. cit., p. 64 e 65). Uns dão-no como filho de Gil Esteves e de Maria Lourenço (sendo esta filha de Lourenço Pires, escudeiro no tempo de D. Duarte, e da tal D. Brígida Sodré de Bectaforte, a tal vergôntea de uma casa condal inglesa que vinha para Portugal casar com um simples escudeiro). Outra versão (Segundo o genealogista jorgense Mateus Machado Fagundes. Este versão coincide com uma genealogia dos Sodrés existente na B.N.L. (Reservados, «Colecção Pombalina», cota 321), que remonta a origem desta família a um tal Harold, filho do conde de Hereford, contemporâneo de Henrique 11 (1133-1189), diz que era filho de Gil Sodré e neto de Mossem Fernão (ou Fradique) Sudley, que teria vindo para Portugal com o infante D. Pedro, duque de Coimbra, sendo a referida D. Brígida tia deste Fernão. Outra versão ainda (Segundo a «Grande Enciclopédia Portuguesa e Brasileira», Sodré), diz que a família descende de um tal João Sodré que passou a Portugal na comitiva de D. Filipa de Lencastre (1387), que foi «acontiado» de D. João I, e que foi pai de um outro João Sodré e avô de um Diogo Sodré, «que teve quantia na casa do rei D. Afonso V, que deixou geração da qual provieram os deste apelido», mas não faz qualquer referência ao nosso Vasco Gil Sodré.
O genealogista brasileiro Francisco António Dória, professor de Matemática na Faculdade de Comunicação da Universidade Federal do Rio de Janeiro, publicou recentemente uma interessante investigação sobre os Sodré idos de Portugal e dos Açores para o Brasil, e assevera que Vasco Gil Sodré e seu irmão Diogo Sodré (este, tronco dos Sodré Pereira de Portugal e Brasil) eram filhos de João Sodré, netos de outro João Sodré (John de Sudeley) e 2° netos paternos de William Le Boteler (n. em 1330) e de Joan de Sudeley, sendo esta 7a neta em varonia de Ralph, conde de Hereford, no tempo de Eduardo, o Confessor, e tronco dos Sudeley ou Sudley (Consultado o The Complete Peerage of England, Scotland, Ireland, Great-Britain and the United Kingdom, 1982,6 vols., entradas «BoteIem e «Sudeley», verificamos que Dória segue a par e passo o que de mais consistente se pode colher naquela obra, ou seja: Ralph de Sudeley, que alguns dizem ter sido conde de Hereford, que faleceu a 2.12.1057, e era filho de Dreux ou Drogo, normando (este, filho de Walter lI, conde de Amiens" e neto de Walter I, conde de Amiens), e de Godgifu, filha de Etelredo, rei da Inglaterra. Foi casado com Getha ou Gythia. Deles nasceu Harold de Sudeley, senhor de Sudeley, Ewyas e Toddington (que alguns autores pretendem ser filho do rei Harold), e que terá casado com Maud, de quem nasceu John de Sudeley, c.c. Grace de Tracy, pais de Ralph de Sudeley, f. antes de 25.12.1192, e c.c. Emma. Foram pais de outro Ralph de Sudeley, f. em 1221 ou 1222, c.c. Isabel, de quem nasceu Ralph de Sudeley, senhor de Sudeley, f. em 1241, c.c. Imenia (ou Isabel) Corbet, pais de Bartholomew de Sudeley, senhor de Sudeley, sheriff de Herefordshire, f. em 1274 ou 1280, que c.c. S.p. Joan de Beauchamp (1249-1280). Deste casal nasceu Lord John de Sudeley, f. em 1336, que esteve ao lado de Eduardo I nas guerras contra os escoceses, que casou com Saye (?), e teve Bartholomew de Sudeley, que c.c. Maud de Montfort, e foram pais de John de Sudeley, c.c. Eleanor Scales.
Deste último casal nasceu uma filha Joan de Sudeley, c.c. William Le Botiler (conforme já apontámos no texto biográfico de Vasco Gil Sodré), e tiveram vários filhos, entre os quais John Le Botiler, Lord Sudeley, f. solteiro antes de 1410, conforme expressamente anota o The Complete Peerage. Mas é com este John Le Botiler que as nossas genealogias antigas e modernas, errando ou acertando nas genealogias acima desdobradas, identificam o «português» João Sodré (John Sudley ou Sudeley), acontiado por D. João I e que teria vindo para o nosso país quando o rei português casou com D. Filipa de Lencastre. Nenhuma dessas genealogias diz com quem ele teria casado, mas dão-no como pai de um Diogo Sodré, e de Vasco Gil Sodré, o povoador da Graciosa.
Recorde-se que de Diogo Sodré nasceu Fradique Sodré, e deste, Duarte Sodré, vedor da Fazenda Real e alcaide-mor de Tomar, C.c. Catarina Nunes. Foram pais de Francisco Sodré. 1° senhor de Águas Belasjure uxore, c.c. D. Violante Pereira, filha de João Pereira e n.p. de Galiote Pereira, personagens bem conhecidas das genealogias portuguesas. É deste casal que descendem os Sodré Pereira, de Portugal e do Brasil, e por aqui também se pode perceber que as versões recolhidas por Luis Pimentel não são inteiramente coincidentes com a nossa investigação, que, apesar das incertezas do tema, preferimos a qualquer outra).
E o que seria o famoso castelo de Bectaforte? Será corruptela de Hereford? Ninguém o sabe, mas é possível. As armas dos Sodrés portugueses, nem de perto nem de longe se assemelham às dos Sudley (ou Sudeley) ingleses, família que, de resto, na varonia, é considerada extinta desde 1473. O que não deixa de ser interessante considerar no estudo do prof. Dória, é ter despertado a nossa atenção para o facto de as armas dos Sodré portugueses conterem elementos heráldicos iguais aos da família inglesa (decerto de origem normanda) Boteler (ou Botiler, Butiller, ou finalmente, Butler). A etimologia deste apelido é, obviamente, «bouteille» (garrafa, jarro), que em inglês deu «bottle», e que constituem peças móveis das armas dos Sodrés (Se aceitarmos que João Sodré é neto de William Le Boteler, e uma vez que já vimos que as armas dos Sudeley (ou Sudley) nada tem de comum com as armas dos portugueses Sodré, então é de averiguar se há alguma coincidência entre estas armas e as do suposto avô. E o interessante é que há uma extraordinária semelhança. Assim, as armas dos Boteler, com alguma variantes no número das peças e nos esmaltes, são de guIes three covered cups or, ou, noutra versão, azure, three covered cups oro Ou seja, as armas que os heraldistas atribuem aos Sodrés de Portugal são, na essência, iguais às dos Boteler, com pequenas variantes; sendo que os Sodrés tem uma asna de ouro com três estrelas vermelhas de 6 raios. A variante do metal das jarras ou taças (em Inglaterra, de ouro, em Portugal, de prata), e o acrescento da asna, poderá significar que os Sodrés receberam armas de mercê nova em Portugal, baseadas na provança que terão apresentada da sua ligação com os Boteler ingleses.
O assunto fica aguardando melhor esclarecimento dos especialistas heráldicos, na certeza, porém, de que as armas dós Sodrés nada tem a ver com as dos Sudeley, mas sim com as dos Boteler (ou Butler). Quanto ao verdadeiro entronque do 1º Sodré português, só a carta de armas concedida a 23.3.1503 a Diogo Vaz Sodré nos poderia, eventualmente, fornecer dados mais concretos. Por agora, limitamo-nos a colocar estas hipóteses, sabendo bem que são autorizadas pela cronologia e pela vinda de nobres ingleses no séquito de D. Filipa de Lencastre. Nos finais do séc. XIX ainda se conhecia o texto integral da carta de brasão de armas de Diogo Vaz Sodré, quando Manuel Veloso de Armelim - vid. ARMELlM, § 1°, n° 7 -, requereu o foro da Casa Real. O paradeiro desse texto (apresentado em treslado) é hoje desconhecido, mas ainda deve ter chegado às mãos do Dr. Manuel Armelim, filho do requerente, e que faleceu em 1935).
O certo é que Vasco Gil faleceu na Graciosa, nos finais do século XV ou no dealbar do século XVI. Todos os filhos que aqui elencamos temo-los como havidos do seu 2° casamento com Beatriz Gonçalves da Silva. Frutuoso só nos fala dos 5 primeiros filhos - os outros, colhemo-los noutros genealogistas açorianos, nomeadamente na obra inédita do cónego Correia de Ávila.
Filhos:
2 Diogo Vaz Sodré, que segue.
2 Fernão Vaz Sodré, que nasceu entre 1478 e 1483.
A ligação ou aventura amorosa de contornos mal definidos do 2° capitão de toda a Graciosa, Duarte Correia, com Mécia Vaz Sodré, irmã de Fernão Vaz, e a contrariadíssima pretensão do casamento do irmão Diogo Vaz Sodré com uma irmã do mesmo Duarte Correia, mostra-nos que o ambiente gerado acentuou as velhas querelas entre as duas famílias, provocando novo conflito entre os Correias, orgulhos da sua estirpe familiar, e os Sodrés, filhos do alentejano e homiziado Vasco Gil Sodré.
Como já notámos, os desentendimentos e malquerenças entre as duas famílias, iniciam-se quando Pedro Correia da Cunha aparece investido como capitão de toda a ilha, detendo os poderes que competiam aos delegados do Donatário, e reprimindo as possíveis ambições que Vasco Gil alimentaria, sentindo-se herdeiro do cunhado Duarte Barreto.
Para melhor se ajuizar da personalidade de Fernão Vaz Sodré, e da maneira como se apresentava em defesa da honra dos seus, socorramo-nos novamente de Gaspar Frutuoso: «(...) estando uma noite Duarte Correia ceando, entrou Fernão Vaz Sodré pela porta e com uma espada lhe jogou um golpe pera ali o matar, e a mãe de Duarte Correia, que tinha defronte de si a candeia acesa, que o cegava, com o que não via, vendo-o disfarçado, sem o conhecer, cuidando que trazia algum recado, não dizia nada ao filho, mas como não o viu mais arrancar, gritando, lhe disse: «Filho, guarda-te». Ele não viu mais que a sombra sobre si e fugiu com o corpo pera uma parte, e quando se arredou, tanto errou o golpe e deu na cadeira, que fendeu até abaixo, e em dando, assoprou a candeia e foi-se cuidando que lhe dera» ( Frutuoso, op. cit., p. 313).
A descrição de Frutuoso é eloquente quanto ao pundonor do nosso Fernão Vaz, mas erra, quando, em continuação deste episódio, acrescenta: «o capitão velho, Pêro Correia, que estava em cama muito enfermo, logo pôs por obra pera o prenderem, porque algumas vezes lhe fazia Fernão Vaz muitas daquelas afrontas e ali tornou a querelar dele como entrara em sua casa pera lhe matar o seu filho» (Frutuoso, op. cit., p. 313). O lapso consiste no facto de que nunca poderia ter sido o «capitão velho» a ordenar a prisão de Fernão Vaz, pela simples razão de que, dando-se este episódio em 1502 ou 1503, já Pedro Correia tinha morrido em Lisboa em 1499. Se houve ordem de prisão, ela só poderá ter sido dada pelo próprio Duarte Correia, já então desempenhando as funções de capitão, uma vez que seu irmão mais velho Jorge Correia da Cunha, natural herdeiro da capitania, falecera ainda antes do pai, em 1495. E foi por tudo isto que, prudentemente, «Fernão Vaz se desnaturou da terra, vindo-se pera esta ilha de São Miguel, onde foi escrivão da Câmara na vila da Ribeira Grande» (Frutuoso, op. cit., p. 313) (Teria tido este cargo antes ou depois do exercício de seu cunhado Roque Rodrigues, que nele foi investido por carta régia de 13.8.1539, por renúncia e venda que dele lhe fez Gonçalo Gomes, por um instrumento público lavrado pelo tabelião Gonçalo Anes a 3 de Janeiro desse ano (Archivo dos Açores, vol. 8, p. 413). A 12.5.1555 (Archivo dos Açores, vol. I, p. 390), o mesmo Roque Rodrigues assinou o termo de uma vereação na qualidade de «escrivão», o que leva a concluir-se que Fernão Vaz só passou a desempenhar essa tarefa depois desse ano. Pesquisadas as chancelarias régias desse período, não encontrámos, porém, a sua nomeação para este oficio. Tê-lo-ia exercido apenas interinamente, em vida do cunhado? Ou trata-se de uma errada informação de Frutuoso?).
Estabelecido na Ribeira Grande, onde Gaspar Frutuoso viveu e paroquiou, assim se justifica o pormenor e o desenvolvimento que o cronista dá à saga dos Sodrés, aceitando a versão dos acontecimentos que os descendentes de Fernão Vaz Sodré lhe quiseram contar.
Casa na Ribeira Grande com F. , falece antes de 1535, filha de Rui Garcia, «homem honrado e rico, que veio do Landroal, junto de Vila Viçosa. Foi à África e lá se fez cavaleiro, quando foram os Tavares» (Frutuoso, Livro Quarto das Saudades da Terra, vaI. 1, p. 365. Quando morreu, Rui Garcia deixou aos hospital da Ribeira Grande cerca de 1 moia de terra, no que foi seguido também por sua mulher que deixou ao mesmo Hospital igual porção de terreno. Foi um dos que esteve presente a 4.6.1507 no contrato celebrado com João de La Pena, mestre de obras biscainho, para a construção da igreja Matriz daquele povoado, em vésperas de se tomar vila (Frutuoso, Livro Quarto das Saudades da Terra, vaI. 2, p. 105). Os irmãos Tavares, a que se refere o cronista, Rui, Henrique e Gonçalo, serviram em Arzila e Tânger, de 1508 a 1511, na expedição comandada por Rui Gonçalves da Câmara. Todos foram, ali armados cavaleiros e, mais tarde, em 1534, foram feitos fidalgos de cota de armas, por cartas de 2, 3 e 5 de Dezembro), e de Catarina Dias, nascida em Portugal e falecida na Ribeira Grande a 7.1.1535, com testamento lavrado a 8.11.1507.
Filho (a?) (Admitimos que o filho seja o próprio Gaspar Rodrigues, que aqui damos como seu genro).
3 F. , c.c. Gaspar Rodrigues, o Velho, falecido na Ribeira Grande a 22.8.1581, com testamento lavrado a 6.7.1575, posteriormente acrescentado de um codicilho datado de 31.12.1580, mercador.
Filho:
4 Francisco Sodré, n. cerca de 1560.
Homem da «governança da Ribeira Grande» (Gaspar Frutuoso, Livro Quarto das Saudades da Terra, vaI. 1, p. 224).
C. 1 a vez com Maria de Gouveia.
C. 2ª vez na Ribeira Grande com Mécia de Paiva, filha de Vasco Afonso e de Margarida Fernandes (Gaspar Frutuoso, Livro Quarto das Saudades da Terra, vol. 1, p. 284).
Filhas do 1º ou 2º casamento:
5 Maria Sodré, s.g.
5 Ana Sodré, s.g.
Filha do 2º casamento:
5 Beatriz do Canto (Fica por explicar como é que usou o apelido Canto).
C. na Ribeira Grande com António Furtado - vid. FURTADO DE MENDONÇA, §.6°, n° 4 -. C.g. extinta.
2 Mécia Vaz Sodré, que diz-se ter casado com Duarte Correia da Cunha - vid. CORREIA, § 2°, nº 2-.
No entanto, pensamos que este casamento nunca se chegou a realizar. Se não, atente-se no que diz Frutuoso: «Dali a pouco tempo faleceu o capitão Pedro Correia, e, depois, tratou Diogo Vaz demanda com Duarte Correia, seu filho, que lhe sucedeu na capitania, o qual, como se viu capitão, não queria casar com Mécia Vaz, que dantes tinha recebida («Recebida», entenda-se como casamento ajustado, prometida, esposa, noiva, e não «casada», como hoje se interpretaria, Por isso, diz o cronista que ele não quis casar com ela, «que dantes tinha recebida»), e, litigando, por ela seu irmão Diogo Vaz, correndo a demanda e indo ao reino, houve o capitão sentença por si contra a Mécia Vaz, por ter casado em Portugal a Dona Filipa, sua irmã, com o irmão de João Roiz de Sá, que dizem nisto o favoreceu. Tambem dizem alguns que, falecendo (em 1507) este segundo capitão, Duarte Correia deixou e declarou em seu testamento a dita Mecia Vaz por sua mulher, e, como Dona Filipa soube que o irmão era morto, houve os papeis à mão e nunca os quis dar, por entender ser a capitania de Mécia Vaz, pois não havia filho algum de Duarte Correia que a herdasse e ele a deixava por sua mulher. Concertou-se, então, com Diogo Vaz seu cunhado, dizendo-lhe como o tinha os papéis na mão e a capitania era de sua irmã, Mécia Vaz, que não lhe havia de fazer bem algum, pelo que fizesse ele com ela aceitasse vinte moios de terra por concerto e deixasse a capitania a ela, Dona Filipa, porque, se lhe ficasse (pois não tinha filho nenhum e era mais velha que sua irmã mulher do dito Diogo Vaz), por sua morte lhe deixaria e em sua vida lhe faria sempre muito bem. Contentando isto a Diogo Vaz, fez, com a irmã Mécia Vaz que tomasse os vinte moios de terra, que ela aceitou, por ser mulher que queria casar, pera seu casamento, e, Dona Filipa, como teve o concerto feito, vendeu a capitania ao marichal Dom Fernando Coutinho». (A quem foi passada carta da capitania a 28.9.1507).
Uma leitura atenta desta narrativa revela confusões e incongruências, mas, no essencial, nela está a verdade do que se passou, se expurgarmos as contradições do cronista.
Assim, começamos por anotar que Duarte Correia «não queria casar com Mécia Vaz», pelo que os irmãos Sodré «vendo isto (n.) determinaram tomá-lo com ela e fazê-lo casar» (Gaspar Frutuoso, Livro Sexto das Saudades da Terra, p. 313). Este facto conduz a uma «demanda com Duarte Correia (n.) e litigando por ela e indo ao Reino, houve o capitão sentença por si contra Mécia Vaz».
Podem colocar-se várias questões. Porquê uma demanda entre Duarte Correia e Mécia Vaz, interpondo-se Diogo Vaz, se fossem efectivamente casados? Demandavam o quê? Não parece evidente que a sentença dada, favorável ao Correia, foi a de não ser obrigado a casar? E se as relações entre as duas famílias não estivessem tão exacerbadas, porquê a tentativa frustrada de Fernão Vaz Sodré matar Duarte Correia?
Havendo falecido o Correia em 1507, porque razão ter sido sua irmã D. Filipa da Cunha a deter «os papeis à mão» e não a própria Mécia Vaz se, efectivamente, fosse a viúva e a herdeira indiscutível de seu marido?
Com que fundamentos haveria D. Filipa de procurar uma «concertação» com Diogo Vaz, prometendo-lhe mundos e fundos? Com base em direitos que ela não possuía? A menos que fosse ela a herdeira dos direitos de capitania, coisa duvidosa, pois Duarte Correia tinha sobrinhos, filhos de seu irmão mais velho Jorge Correia.
Mas admitindo este absurdo, porque razão não procurou D. Filipa um entendimento directo com a própria Mécia Vaz? Não faz qualquer sentido que as partes litigantes tenham chegado a um acordo para depois ser D. Filipa a vender a capitania em 1507 a D. Fernando Coutinho e não a pretensa detentora da capitania, Mécia Vaz.
Frutuoso afirma que tal concertação acabara por realizar-se e que Mécia Vaz «por ser mulher que queria casar, pera seu casamento» aceitara os 20 moios de terra como contrapartida para abrir mão da capitania. Mas abrir mão de uma capitania por 20 moios de terra, alguém que a si própria e aos seus poderia atribuir-se muitos mais 20 moios?!
E se tudo se tivesse passado assim, porque motivo Frutuoso, mais adiante (Gaspar Frutuoso, Livro Sexto das Saudades da Terra, p. 318), após a ida para o Alentejo de Tristão da Cunha (sobrinho mais velho de Duarte Correia), herdeiro natural de seu avô, pai e tio, escreveu que «sabendo isto (ou seja, da ida de Tristão da Cunha para o Alentejo), o marichal se foi a el-rei e lhe pediu que, pois aquela capitania fora de um seu parente que lhe falecera em casa, lhe fizesse mercê dela como lha fez».
Esta informação de Frutuoso entra em contradição com o relato de que fora a D. Filipa que vendera a capitania a D. Fernando Coutinho. O acto era impossível porque D. Filipa nunca poderia vender o que não possuía. O próprio Frutuoso duvida de todas estas peripécias escrevendo: «E por esta causa de Dona Filipa dizem que perdeu Mécia Vaz a capitania e seus herdeiros, mas não sei com quanta verdade se diz isto». Mais à frente o cronista adianta que «passado o tempo de um ano e dia que as leis do reino dão pera se poderem opor os que pretendem ter direito nas tais coisas e, se não, que fiquem à coroa, não vindo no dito tempo, ficou a dita capitania deserta pera el-rei».
Todas estas dúvidas que aqui se levantam não são inéditas, pois já nos meados do séc. XVII, Frei Diogo das Chagas (Espelho Cristalino, p. 462) escrevia com alguma perplexidade: «Desgraça foi grande certo dos descendentes deste nobre fidalgo Jorge Corrêa da Cunha ficar elle sem a Capitania, morrendo seu irmão sem filhos o que podemos atribuir a Juizos de Deus, que dá as couzas, quando, e como quer, e tira as quando lhe pareçe, como neste, e em outros semelhantes, e ainda maiores casos o tempo nos tem mostrado». A perplexidade de Chagas não deixava de ter razão de existir, porquanto Duarte Correia tinha, de seu irmão mais velho Jorge Correia, uma porção de sobrinhos e sobrinhos-netos, que muito bem poderiam ter dado continuidade à capitania, tal como aconteceu noutras ilhas (Soares de Sousa, Câmaras, Côrte-Reais, Utras ... ).
A conclusão que tiramos é a de que nunca existiu qualquer concertação entre D. Filipa da Cunha e Diogo Vaz Sodré. Por outro lado, Duarte Correia nunca casou 2ª vez com Mécia Vaz (a 1ª e única vez que casou foi com D. Catarina de Ornelas) e limitou-se a cortejá-la: «Nestas idas se veio a namorar Duarte Correia, mancebo, de uma sua filha, chamada Mécia Vaz Sodré; e depois de a haver, se afastava de sua casa». Até onde possam ter ido essas relações ignora-se. Quando muito, admitamos que lhe tivesse prometido casamento, o que se reduz, na expressão frutuosiana, a um breve «que dantes tinha recebida».
A querela entre as duas famílias parece ter sido um facto, pela razão que apresentámos quando escrevemos sobre o povoador Vasco Gil Sodré. O casamento contrariado e a furto de Diogo Vaz Sodré com D. Briolanja da Cunha e a pretensa e indesejada união entre Duarte Correia e Mécia Vaz, foram as consequências naturais dessa malquerença que originou os actos descritos.